segunda-feira, 20 de abril de 2009

A reciclagem verbal ou de como as palavras se resgatam

Viveram sempre juntas e por isso tinham os mundos bem misturados. Uma era avó, mãe e amiga a outra era a neta, a filha e a companhia. Ambas mantinham assim religiosamente a solidão afastada.
Margarida, a neta adorava escrever, já Lurdes, a avó adorava falar e céus, com que capacidade! Era capaz de fintar o interlocutor mais egocêntrico. E como os bons ouvintes escasseavam já, tal facto atribuia ainda maior importância aquela cumplicidade de sangue insuspeita, feita de ouvidos frescos e interessados.
À avó, nos últimos tempos, preocupava-a a crise financeira que ameaçava, através da rádio, acabar com as economias de uma vida, no banco de uma vida, agora transformado em malfeitor de intenções obscuras. Dona de um coração que se podia classificar como estóico, que se encontrava agora, em declínio pouco auspicioso, muito desgostoso com o recente terramoto em Itália. D.ª Lurdes estava certa de se tratar de um sinal claro do fim do mundo, ao que Margarida acrescentava que o fim do mundo também já tinha passado por Lisboa em 1755 e como sempre e em tudo, algumas paredes ou parte delas resistiram e outras não. Mas a avó concluía com o acerto próprio de quem está habituado a rematar as conversas:
- qualquer morte significa perdas demasiadas.
E nesse assentimento mutuo, a neta pediu licença, deixou na sala a avó a suspirar as contingências do mundo no tricot habitual e retirou-se, com medo que a inspiração lhe escapasse toda no curto trajecto entre aquela divisão e o quarto. Se tivesse sorte ainda ia mergulhar no abismo. Sim, porque a sua escrita não se fazia sobre a luz. Desses romantismos não se compadecia, se escrevia era porque tinha de ser, num caminho de sombras. No inicio queria que tudo soasse bem e frustrava-a muito que tal não acontecesse. Agora, mais madura, já não lhe importava se soava bem, sabia que o caminho era feito às escuras e que nunca haveria luz suficiente. Tal deixara de a preocupar há muito tempo, sentava-se e esperava. Nesse dia, pensou no que sustenta o homem e nos seus abalos individuais que a uns deixa inteiros e outros parcial ou completamente destruídos. Será que tal como aos edifícios que sofrem a derrocada, também é necessário calcular ferro e flexibilidade suficientes para manter as estruturas individuais em pé? Ou apenas a derrocada conduz à reconstrução temível e vital. Como fica estranha a vida que sobra após a morte dos que nos são próximos. E apesar de estranha, ainda ainda mais urgente. Um desafio a que nenhum homem devia virar costas. A avó concordaria que nenhuma primavera se repete, é certo, mas tratava-se de deixar as amendoeiras florir novamente, porque mesmo sobre lágrimas, as flores renasceriam a seguir ao Inverno.

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