quinta-feira, 16 de abril de 2009

O gaiato


Tratava-se de um edificio enorme, de paredes maciças, brancas por fora e negras por dentro.
Um sítio lugubre, destituído de vida ou da felicidade que ela encerra. Retrato fiel do silêncio e da austeridade, sem complacências nem delongas.
O dia tinha chegado e a realidade avançava para o gaiato impreparado.
Sérgio quase podia jurar que nessa altura se ouviu um coro de anjos, assobiando uma música de Jaques Brell – Ne me quitte pas.
E assim arrastando os passos como grilhetas, com os pés enterrados no cimento frio, foi conduzido a um estranho. Um homem velho de ar inquisidor e embora Sérgio não fizesse a mais pálida ideia do que isso fosse, sentiu-o instalar-se nele para sempre. Como para sempre a imagem do velho perguntando o que deve ter sido importante. Qual terá sido a resposta? Terá sido algo similar ao que ele pensa ter dito quando a importância residia toda, qual matrona gorda e feia, na pergunta. Uma pergunta daquelas só poderia ter sido concebida por um adulto. Sérgio não entendia ainda bem esse mundo e com os pés trémulos e a caminho, estava convicto do seu despropósito, da sua completa falta de sentido.
Sérgio respondeu qualquer coisa e o velho assentiu, rabiscando com a pressa toda vincada nas pontas dos dedos, algo tão solene, quanto desnecessário.O juíz dissera que o pai lhe havia retirado a condição de filho e ele que não sabia que isso era possível não entendeu nada, nem nesse momento nem nunca.
Mas foi esse momento e não outro aquele que retirou a expressão ao rosto do gaiato, que dali se arrastou para viver sem fé na burocracia instituida por homens como ele também haveria de ser.
E mal saisse dali, escapado daquela decisão unívoca, surda, vulgar, jamais cantada ou chorada por outra gente , senão ele próprio, abriria a porta à sua frente para avançar livre, leve e só.

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