domingo, 11 de janeiro de 2015

Fechou a porta.
Arrendou a casa.
Não gostou do sítio.
Mudou.
Voltou a enganar-se.
Fez novos planos.
Teve medo.
Abriu outra porta.
Entrou.
Convidou alguém a sair.
Deixou alguém entrar.
Dissolveu-se nos dias.
Aprendeu que a verdade que mata é a mesma que salva.
Chorou.
Correu rápido.
Caminhou lentamente.
Riu.
Observou em silêncio.
Aprendeu que quando observada a vida é outra coisa.
E agora, que faz questão de dançar muitas vezes.
Sempre que a memória lhe pesa.
Passa na florista e compra flores.
Amarelas da côr do sol.









domingo, 2 de agosto de 2009

Chuva abençoada


Há dias em que os nossos amigos são tão especiais que ocupam um lugar imenso no mundo, sagrado e inquestionável.
Há dias em que desejávamos ter tirado fotos da jornada conjunta, para um dia, tropeçando nelas, lembrarmos o quanto a felicidade reside nas coisas mais simples.
Há dias em que o sol pode faltar, mas ainda assim o riso aparece e consegue romper entre as nuvens...mais, consegue andar à chuva e comer um gelado a tiritar de frio.
Em dias assim as conversas entre amigos nunca são banais. Nenhum assunto é menor, todos os disparates permitidos e o riso o elemento mais precioso da vida… e não as contas, o emprego ou a família que não nos compreende… mas aquele riso apurado, bastião da cumplicidade e partilha ao longo dos anos.
Hoje o dia não foi assombroso, mas o gozo da amizade essencial foi, abundante em horas cúmplices de felicidade que vai a dormir connosco.

domingo, 14 de junho de 2009

Um dia hei-de ter um jardim



Um dia hei-de ter um jardim, onde plantar todos os amores desta vida que não floriram. Hei-de adorná-lo com o arremesso das pedras solidificadas nos recantos de mim, nos sítios onde nunca fui, nunca estive, nem levei ninguém. Um dia hei-de amar esse lugar, sabendo de cor o tempo que o caminho levou, conhecendo o trilho de olhos fechados, sem ajudas ou mapas. Um dia, confiarei apenas nos meus sentidos, para que me indiquem o pé que irá à frente, a mão que içarei do cansaço, que livro terei no bolso e com quem irei aprender a adornar a terra sagrada onde desejarei terminar os meus dias.

domingo, 7 de junho de 2009

Cada qual tem seu álcool

BUT I AM NOT SO THINK AS YOU DRUNK I AM :)

"Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em existir.
Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo. Se são horas,
recolho ao escritório como qualquer outro. Se não são horas,
vou até o rio, como qualquer outro. Sou igual. E por traz de
isso, céu meu, constelo-me às escondidas e tenho o meu
infinito." (F.PESSOA)

segunda-feira, 20 de abril de 2009

A reciclagem verbal ou de como as palavras se resgatam

Viveram sempre juntas e por isso tinham os mundos bem misturados. Uma era avó, mãe e amiga a outra era a neta, a filha e a companhia. Ambas mantinham assim religiosamente a solidão afastada.
Margarida, a neta adorava escrever, já Lurdes, a avó adorava falar e céus, com que capacidade! Era capaz de fintar o interlocutor mais egocêntrico. E como os bons ouvintes escasseavam já, tal facto atribuia ainda maior importância aquela cumplicidade de sangue insuspeita, feita de ouvidos frescos e interessados.
À avó, nos últimos tempos, preocupava-a a crise financeira que ameaçava, através da rádio, acabar com as economias de uma vida, no banco de uma vida, agora transformado em malfeitor de intenções obscuras. Dona de um coração que se podia classificar como estóico, que se encontrava agora, em declínio pouco auspicioso, muito desgostoso com o recente terramoto em Itália. D.ª Lurdes estava certa de se tratar de um sinal claro do fim do mundo, ao que Margarida acrescentava que o fim do mundo também já tinha passado por Lisboa em 1755 e como sempre e em tudo, algumas paredes ou parte delas resistiram e outras não. Mas a avó concluía com o acerto próprio de quem está habituado a rematar as conversas:
- qualquer morte significa perdas demasiadas.
E nesse assentimento mutuo, a neta pediu licença, deixou na sala a avó a suspirar as contingências do mundo no tricot habitual e retirou-se, com medo que a inspiração lhe escapasse toda no curto trajecto entre aquela divisão e o quarto. Se tivesse sorte ainda ia mergulhar no abismo. Sim, porque a sua escrita não se fazia sobre a luz. Desses romantismos não se compadecia, se escrevia era porque tinha de ser, num caminho de sombras. No inicio queria que tudo soasse bem e frustrava-a muito que tal não acontecesse. Agora, mais madura, já não lhe importava se soava bem, sabia que o caminho era feito às escuras e que nunca haveria luz suficiente. Tal deixara de a preocupar há muito tempo, sentava-se e esperava. Nesse dia, pensou no que sustenta o homem e nos seus abalos individuais que a uns deixa inteiros e outros parcial ou completamente destruídos. Será que tal como aos edifícios que sofrem a derrocada, também é necessário calcular ferro e flexibilidade suficientes para manter as estruturas individuais em pé? Ou apenas a derrocada conduz à reconstrução temível e vital. Como fica estranha a vida que sobra após a morte dos que nos são próximos. E apesar de estranha, ainda ainda mais urgente. Um desafio a que nenhum homem devia virar costas. A avó concordaria que nenhuma primavera se repete, é certo, mas tratava-se de deixar as amendoeiras florir novamente, porque mesmo sobre lágrimas, as flores renasceriam a seguir ao Inverno.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

O gaiato


Tratava-se de um edificio enorme, de paredes maciças, brancas por fora e negras por dentro.
Um sítio lugubre, destituído de vida ou da felicidade que ela encerra. Retrato fiel do silêncio e da austeridade, sem complacências nem delongas.
O dia tinha chegado e a realidade avançava para o gaiato impreparado.
Sérgio quase podia jurar que nessa altura se ouviu um coro de anjos, assobiando uma música de Jaques Brell – Ne me quitte pas.
E assim arrastando os passos como grilhetas, com os pés enterrados no cimento frio, foi conduzido a um estranho. Um homem velho de ar inquisidor e embora Sérgio não fizesse a mais pálida ideia do que isso fosse, sentiu-o instalar-se nele para sempre. Como para sempre a imagem do velho perguntando o que deve ter sido importante. Qual terá sido a resposta? Terá sido algo similar ao que ele pensa ter dito quando a importância residia toda, qual matrona gorda e feia, na pergunta. Uma pergunta daquelas só poderia ter sido concebida por um adulto. Sérgio não entendia ainda bem esse mundo e com os pés trémulos e a caminho, estava convicto do seu despropósito, da sua completa falta de sentido.
Sérgio respondeu qualquer coisa e o velho assentiu, rabiscando com a pressa toda vincada nas pontas dos dedos, algo tão solene, quanto desnecessário.O juíz dissera que o pai lhe havia retirado a condição de filho e ele que não sabia que isso era possível não entendeu nada, nem nesse momento nem nunca.
Mas foi esse momento e não outro aquele que retirou a expressão ao rosto do gaiato, que dali se arrastou para viver sem fé na burocracia instituida por homens como ele também haveria de ser.
E mal saisse dali, escapado daquela decisão unívoca, surda, vulgar, jamais cantada ou chorada por outra gente , senão ele próprio, abriria a porta à sua frente para avançar livre, leve e só.

terça-feira, 14 de abril de 2009

O poema que de tão fácil se torna difícil

Das flores de cerejeira até à poesia Hai Kai*... *Hai kais, pequenos poemas em três linhas, simples como a vida deve ser.

"Quando me canso
da paisagem de leste
viro a cadeira para oeste"
Paulo Franchetti


"O mar, o azul, o sábado
liguei pro céu
mas dava sempre ocupado"
Paulo Leminski


"Nas noites de frio
um bom vinho, um edredon
dois corpos no cio"
Cristina Saba


"Até que enfim
não dei em nada
dei em mim"
Rubens Jardim


"Tudo dito,
nada feito,
fito e deito"
Paulo Leminski


"O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga."
Guilherme de Almeida

O dia termina.
A agitação quebra.
Suspenso, o gato fita o dono.
CC